Title: [LIVROS] RESENHA - AS RELAÇÕES PERIGOSAS
Author: Jéssica Ohara
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Durante alguns meses, um grupo peculiar da nobreza francesa troca cartas secretamente. No centro da intriga está o libertino vis...
Durante alguns meses, um grupo peculiar da nobreza francesa troca cartas secretamente. No centro da intriga está o libertino visconde de Valmont, que tenta conquistar a presidenta de Tourvel, e a dissimulada marquesa de Merteuil, suposta confidente da jovem Cécile, a quem ela tenta convencer a se entregar a outro homem antes de se casar.
Lançado com grande sucesso na época, As relações perigosas teve vinte edições esgotadas apenas no primeiro ano de sua publicação. O livro ficou ainda mais popular depois de várias adaptações para o cinema, protagonizadas por estrelas hollywoodianas como Jeanne Moreau, Glenn Close e John Malkovich. E também boa parte do sucesso do romance deve-se ao fato de a história explorar com muita inteligência os caminhos obscuros do desejo. Esta edição, com tradução de Dorothée de Bruchard, traz uma introdução da editora inglesa Helen Constantine.
A sociedade representada em As Relações Perigosas traduz-se perfeitamente no título do livro. Em uma aristocracia em que qualquer olhar ou conversa com alguém considerado um pária poderia pôr a própria reputação em risco, é preciso ter muito cuidado com quem se relaciona.
O comportamento é regido por normas baseadas em aparências e supressões dos desejos naturais, onde são julgados e excluídos aqueles considerados infratores das regras morais, que podem estar ou não escritas nas leis. Exclusão essa que é feita mais pelo punido do que pelo julgador, pois é preferível ante o auto isolamento do que a chacota pública.
Mas engana-se quem pensa que essa sociedade se importa verdadeiramente com o “crime”, mas sim com a descoberta do mesmo e a seguinte exposição. Vemos isso através das cartas trocadas entre os personagens, cada detalhe é pensado para que não fique claro a verdadeira natureza de cada um e não dando margem para comentários.
Descobrimos isso tanto por quem as escreve como pelas pessoas que são descritas nelas. Talvez seja esse um dos grandes trunfos desse livro: o formato. O autor dá a entender que ele só teve o papel de organizar para futura publicação e que a única coisa que fez foi suprimir as partes por ele consideradas “inúteis”.
Lendo agora, isso parece um truque e por mais que saibamos que é mentira consegue nos envolver e enganar em algumas partes. Mas temos que ver que na época que foi escrito, provavelmente muitas pessoas identificaram tipos, personagens e comportamentos contidos nele, uma indireta a la século XVIII. Por isso é que se pode entender toda a confusão e claro, o sucesso que ele fez. Obviamente, depois de um tempo foi proibido e condenado a destruição, mas todo mundo sabe que os banidos são os melhores e isso só fez a lenda entorno dele aumentar.
Podemos dividir o livro em dois “lados”, o das mulheres e o dos homens, cada um com seu representante da má conduta. Esse tipo de separação é sugerido através da própria história, que aos poucos nos leva a perceber a guerra que sempre existiu entre os sexos e traduzida, entre quem ataca e quem defende.
A Marquesa de Merteuil se apresenta como uma vingadora de seu gênero, que veio ao mundo com o propósito de usar e brincar com os homens como eles têm feito com as mulheres durante todo esse tempo. A personalidade é a mais forte e marcante e é possível ver toda uma raiva e um sentimento de injustiça por boa parte da sua vida não ter tido o direito ao próprio destino e, mesmo quando consegue assumir as rédeas, sempre tem que ser a mais cuidadosa e nunca pode se entregar por inteira pelo medo de sacrificar as aparências.
Através de uma técnica, que ela mesma diz ter desenvolvido ao longo do tempo, conseguiu mascarar os seus sentimentos e nunca deixá-los transparecer a quem ela não queria. Se tornou uma profissional da intriga e também acima de qualquer suspeita, sendo um exemplo da moral e bons costumes, assim se tornando apta a realizar todos os seus caprichos.
Interessante é perceber como o autor a julga e a expõe em suas notas de rodapé, mas ao mesmo tempo faz isso com uma áurea de escárnio, como se estivesse dizendo o óbvio só para atiçar e atingir. Minha amiga definiu bem isso como aquele "cara que não tinha influência para entrar com tudo na intriga, mas que via tudo acontecendo e curtia o circo pegar fogo (Quem não curte?)".
No outro lado do campo de batalha temos o Visconde de Valmont, que é o correspondente de igual pensamento da Marquesa. Ele usa as pessoas, propõe desafios de conquistas, destrói reputações e é a partir daí que podemos ver os diferentes papeis do homem e da mulher. Enquanto que ela tem que se esconder e se fazer de mil artifícios para viver suas aventuras, Valmont só guarda segredo e mente até onde lhe convém, mas todos sabem o que ele faz e como faz e ainda assim é visto e recebido pelas mais “nobres” pessoas.
O consideram, sim, perigoso e má afamado, mas, devido a sua riqueza e o simples fato de ser um homem, o dá mais direito e provoca mais medo. Todos querem que Valmont não fale mal ou faça chacota da reputação alheia, e para isso precisam que ele os queira bem. Também tem um outro fator, o da hipocrisia, ao mesmo tempo que rechaçam suas ideias e se escondem atrás do véu da moralidade, eles sentem inveja da liberdade e ficam encantados com o poder do sexo.
Afinal, de acordo com eles, a virtude é responsabilidade só da mulher, o homem é o perigo imutável e a única coisa que a decência permite é a defesa. Aquelas que mais se defendem são as mais virtuosas e chegam ao ápice da quase santidade. Essas são louvadas pela sociedade tal como as inocentes que ainda não conhecem nada do mundo.
É o caso das duas personagens que servem de joguetes, vinganças e experiências para o Visconde e a Marquesa. Primeiro, Cécile Volanges, filha da Sra. de Volanges que acaba de sair do convento e está prometida para casamento à um homem mais velho, que é um antigo amante de Merteuil. Por causa disso ela vira alvo de um plano, que busca destruir a sua inocência e arquitetar uma vingança.
Cécile é uma menina tão inocente, doce e jovem, que a cada mentira e esquema que a envolveram o meu coração apertou. Mas também foi uma loucura notar como ela era facilmente convencida e envolvida, o que nos faz perceber a educação que se davam as mulheres nos conventos, não as preparando para o mundo e, apesar de todo o fulgor religioso que colocavam nas suas cabeças, era muito difícil para elas entender as maldades do mundo.
Uma situação só um pouco diferente do que a da Presidente de Tourvel, que se torna a obsessão de Valmont. Casada e também educada religiosamente, é conhecida por sua bondade, caridade e virtude inabalável, tão que os amantes normais já desistiram de tentá-la, virando o perfeito exemplo da mulher direita.
O Visconde decide que vai tirar mais do que a sua fidelidade ao marido, ele vai mudar o foco de sua fé, fazê-la adorá-lo. Não procura a simples sedução, mas a degradação de seu espirito. Quando eu vi Ligações Perigosas de 1988, tinha achado a atuação do John Malkovich quase psicopata e pensei que era exagerada. Mas, após ler o livro, entendo: Valmont é um tipo de alucinado, cheio de planos egocêntricos e com uso tanto da violência física quanto emocional.
Outros personagens aparecem durante a troca de cartas, também as escrevendo. Como a Sra. Volanges, mãe de Cécile e grande defensora da moral. A sra. De Rosemonde, tia já idosa de Valmont, em que percebemos que, conforme a idade é avançada, é socialmente permitido julgamentos menos agressivos e mais consoladores. E temos o Cavaleiro Danceny, que apesar de ser a escolha romântica de Cécile, mostra também um papel autoritário, praticamente um amor exigente de submissão.
O livro fala sobre qualquer tipo de relação e como elas são baseadas nas aparências, e muitas vezes em mais na opinião de quem está de fora do que nos sentimentos. É muito repetido durante a história a frase “rendição da mulher”, de quando ela desiste da sua virtude e se entrega ao prazer. E mesmo quando é à força, de todas as formas ela é a culpada por ser a única capaz de defender o próprio corpo.
E, por fim, tenho que dar destaque para própria noção de que quase toda a história, com suas conquistas e brigas, é desenvolvida a longa distância. Nós que estamos acostumados a mensagens instantâneas já sofremos quando o crush não responde rápido, imagina esperar ás vezes de dois a três dias pelo Correio (poderia ser maior o prazo, mas pelo o que e descrito, o sistema era muito bom).
As raivas e ansiedades eram maiores mas, mesmo assim, a hipocrisia parecia reinar junto com a ideia de pecado. Dá para observar bem isso pelas formas de tratamento usadas e a linguagem, mesmo quando se odiava a pessoa ou a informação.
Esse não é um livro para se recuperar a fé na humanidade, mas definitivamente para ampliar todos os horizontes. E, gente, rolava cada babado na aristocracia...
Quem acompanhou a mini-série da Globo, e o maravilhoso trabalho da Patricia Pillar como a Marquesa, vai perceber que a época é diferente e algumas situações também, mas a essência é a mesma.