Os museus têm como pressuposto guardar objetos de valor histórico ou científico para fins de exibição pública, de modo a registrar à posteridade a importância que eles tiveram para a humanidade num período determinado. Mas como seria no caso de um museu que tivesse como objetivo preservar lembranças de pessoas que morreram? Essa é a essência da trama proposta pela japonesa Yoko Ogawa neste O Museu do Silêncio, primeira amostra da produção da autora que a Estação Liberdade traz ao público brasileiro.
O sonho de dar cabo ao Museu do Silêncio é de uma velha que vive com a jovem filha e um casal de empregados. Um museólogo – narrador da história – é contratado por ela para tirar o projeto do papel. De personalidade hostil e sem o menor traquejo social, a velha tem lá suas idiossincrasias, sobretudo em relação ao tipo de conteúdo que planeja para o museu: as lembranças dos mortos precisam ser representativas do que eles foram em vida. Uma peça de roupa, uma fotografia sorridente – nada disso. Não se trata de preservar lembranças afetivas. Cada objeto do museu precisa ser a metáfora perfeita da existência do finado.
No caso do homem cego, por exemplo, só mesmo seu olho de vidro serve às intenções da velha. E o museólogo – nenhum dos personagens do livro é nomeado – tem que se virar para recolher esse tipo de “relíquia” dos corpos moribundos. Para se familiarizar com essa macabra tarefa, o museólogo conta apenas com a ajuda da filha da chefe, por quem nutre sentimentos paternais... ou nem tanto. E, não bastassem o mau humor e as grosserias da velhota, ele ainda tem de lidar com uma chocante onda de assassinatos de mulheres da região, marcados pela característica comum de apresentar os corpos das vítimas mutilados numa região bem específica.
O Museu do Silêncio é uma obra de suspense, bastante simbólica da produção de Yoko Ogawa, escritora japonesa contemporânea muito saudada no Ocidente. Sua literatura é excêntrica, preterindo tons e temas ternos e etéreos por aqueles mais duros e polêmicos, não raro flertando com o grotesco. Neste livro, ela também opta por ambientar a trama em tempo e local não identificados, o que contribui para diluir os eventuais estranhamentos culturais intrínsecos às suas origens nipônicas, e assim consolidar sua voz de alcance universal.
Um olho de vidro. A sua echarpe favorita. A sua coleção de tampinhas da Coca-Cola. O seu chinelo roxo. O que alguém poderia guardar que tivesse a sua essência? Como escolher que será sua lembrança? Quem trabalha com arte, museologia, conservação, sabe que a preservação é tanto uma escolha do que vai se manter como daquilo que será esquecido, do que fará parte como uma sombra distante na Grande Narrativa que as sociedades criam para si. Em O Museu do Silêncio trava-se uma luta para conservar viva a passagem de habitantes comuns de um vilarejo pequeno no meio das montanhas.
A escritora é japonesa, mas essa vila poderia ser em qualquer lugar. O que eu quero dizer com isso não é que os personagens ou situações podem ser transpostos para o nosso bairrinho. É o isolamento que causa essa sensação, o desconhecido, pode ser que não conheçamos tal lugar o que não é o mesmo que não exista.
Ninguém tem nome na história: há a Velha, a Menina, o Narrador(museólogo), o Jardineiro e a Mulher do Jardineiro, além dos outros personagens que vão e vem. A missão do Museólogo é construir um museu para e sobre os mortos com os objetos mais importantes de cada pessoa que podem ir desde a dentadura até o tumor que retirado e que foi guardado em formol.
Os caminhos tomados durante o livro são surpreendentes, e devo admitir, angustiantes. Cria-se um ambiente de mistérios que tornam a história muito mais complexa do que parecia a primeira vista. A morte tem mais a ver com os vivos do que com os mortos, nós precisamos dizer que aquelas pessoas estiveram ali para confirmar a nossa própria existência.
Trabalho com memória e patrimônio e talvez eu seja suspeita para falar, mas não tem nada mais apaixonante do que tentar entender as marcas que os seres humanos deixaram, o que eles criaram, e principalmente, o que nós insistimos em preservar.
Termino essa resenha com uma música que por razões que nossa vã filosofia não consegue descobrir eu associei com o livro.
AUTOR(A): Yoko Ogawa
PÁGINAS: 304
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