A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista masculino: soldados e generais, algozes e libertadores. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma injustiça. Se em muitos conflitos as mulheres ficaram na retaguarda, em outros estiveram na linha de frente.
É esse capítulo de bravura feminina que Svetlana Aleksiévitch reconstrói neste livro absolutamente apaixonante e forte. Quase um milhão de mulheres lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, mas a sua história nunca foi contada. Svetlana Alexiévitch deixa que as vozes dessas mulheres ressoem de forma angustiante e arrebatadora, em memórias que evocam frio, fome, violência sexual e a sombra onipresente da morte.
"Somos todos prisioneiros de representações e sensações "masculinas" da guerra. Das palavras "masculinas". Já as mulheres estão caladas. Ninguém, além de mim, fazia perguntas para a minha avó. Para a minha mãe."
Você tem 15 anos, sua terra é invadida por nazistas e você voluntaria-se para defender sua pátria. Só que você é mulher. E ainda bem que você é mulher. Você defende o seu país. Você se torna enfermeira, médica, partisan, atiradora, soldada, capitã, lavadeira, marinheira, cozinheira. Você vê sua família morrendo. Você luta. Você vence. Você destrói campos de concentração. E, depois, sua história é apagada e o que é contado no lugar: uma guerra vista somente pelos homens, você volta ao posto de donzela eternamente esperando o seu amado. Mas Svetlana Aleksiévitch aparece para te tirar de trás das cortinas da história. Em A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, nós entendemos a Segunda Guerra Mundial de um jeito diferente, menos glorioso, e talvez mais real. Sangue, dor, destruição e uma vitória, válida e almejada, mas que custou muito sangue.
"As lembranças não são são um relato apaixonado ou desapaixonado de uma realidade que desapareceu, mas um renascimento do passado, quando o tempo se volta para trás. Antes de mais nada, é uma criação."
Os capítulos são divididos entre os temas recorrentes da vida de uma pessoa: amor, família, filhos etc. Só que o objetivo é ver como essas relações ocorreram durante a guerra. As mulheres foram acionadas para o front quando a ameaça nazista estava cada vez mais perto e a mão de obra masculina estava acabando. Não que já não houvessem mulheres no exército vermelho, mas as suas posições ainda não eram tão fortes e nem em grande quantidade. Subiram os números e diminuíram a idade, meninas de 15 anos se arriscaram pelos campos de batalha.
"Tocam nesse tema raramente e com cuidado. Até hoje estão paralisadas não só pela hipnose e pelo medo de Stálin, mas também por sua fé anterior. Ainda não conseguem deixar de amar aquilo que amavam. A coragem na guerra e a coragem de pensamento são duas coragens diferentes. E eu achava que era a mesma coisa."
Durante a leitura, que eu devo salientar que é fascinante, eu senti que havia duas grandes mensagens. A primeira é um misto de força de vontade e amor pela pátria dessas mulheres, elas não pestanejaram, muitas foram contra a vontade da família e deram tudo pelo seu país, me deu um orgulho de pessoas que eu nem conheci. A segunda mensagem também é uma mistura de trauma e apagamento, como eu disse muitas foram jovens para a guerra, e ninguém, nem homens e mulheres, tinha como ter um psicológico preparado para o horror a que eles estavam expostos. Sem contar que com o fim da guerra, a maior parte das mulheres foram tratadas como máculas, seres para ninguém se orgulhar, sendo chamadas até de prostitutas de soldados. Isso me surpreendeu, conhecia uma outra versão dessa história.
"Se você for só humano, não sai vivo. Queima a cachola! Na guerra é preciso lembrar de algo a respeito de si. Algo...Lembrar de algo dos tempos em que o ser humano ainda não era completamente humano...Não sou uma grande erudita, sou uma simples contadora, mas disso eu sei."
Há um tom paternalista nas vozes dos homens que, por acaso, falam nesse livro: como era estranho ter meninas lá. Ou como é triste ver a morte de uma mulher, como tudo mudava com um ar feminino. Eu não acho que essa seja a parte triste, não esperaria menos em uma situação de risco. Mas o que fica comigo, depois dessa leitura, é que não se pode considerar espantoso ter uma mulher lutando, não é espantoso vê-la morrer no front, essas são consequências. A real tristeza é a causa, a própria guerra que quase nunca é planejada ou querida por uma mulher. O potencial do ser humano destruir outro ser humano é que causa náuseas e desilusão.
"Você é escritora. Invente algo você mesma. Algo bonito. Sem piolhos nem sujeira, sem vômito...Sem cheiro e sangue...Que não seja tão terrível quanto a vida..."
Esse livro foi cedido gentilmente pela editora ❤❤❤
AUTOR(A): Svetlana Aleksiévitch
TRADUTOR(A): Cecília Rosas
PÁGINAS: 392
EDITORA: Companhia das Letras
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