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Jéssica Ohara Jéssica Ohara Author
Title: QUEM NASCE EM BACURAU É O QUÊ?
Author: Jéssica Ohara
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O filme começa com uma despedida: Carmelita, uma importante figura local, morre e aqueles que de alguma forma são conectados a ela tent...

O filme começa com uma despedida: Carmelita, uma importante figura local, morre e aqueles que de alguma forma são conectados a ela tentam voltar para dar um último adeus. Nem todos conseguem porque o Brasil encontra-se dividido, regiões diferentes em guerra, a ideia de governo federal destruída e uma intensa disputa pelos recursos naturais. Dentro desse contexto, estranhas mortes acontecem e um suspense se instala: Quem poderia querer destruir Bacurau?

Saí do Cine Odeon extasiada com o que acabara de ver e com uma certa dificuldade em expressar a intensa emoção. Ideias chocavam-se na minha mente, tentativas de sintetizar. Nesse processo, a mais inusitada das palavras para aquele momento fincou raízes: museu. Por quê? O que é um museu? É um lugar de coisas velhas? Um lugar para observar o passado? Um espaço de memórias? 

Etimologicamente, a palavra tem origem no grego mouseion que significa Templo das Musas, um local de artes sublimes. Essa sacralização e distância da pessoa comum já foram bastante desconstruídas e revistas ao longo do tempo. Inclusive, esse ano, o ICOM(Conselho Internacional de Museus) propôs para ser votada uma nova definição do que era um museu.

Os Museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifônicos, orientados para o diálogo crítico sobre os passados e os futuros. Reconhecendo e lidando com os conflitos e desafios do presente, detêm, em nome da sociedade, a custódia de artefatos e espécimes, por ela preservam memórias diversas para as gerações futuras, garantindo a igualdade de direitos e de acesso ao patrimônio a todas as pessoas.

Os museus não têm fins lucrativos. São participativos e transparentes; trabalham em parceria ativa com e para comunidades diversas na recolha, conservação, investigação, interpretação, exposição e aprofundamento dos vários entendimentos do mundo, com o objetivo de contribuir para a dignidade humana e para a justiça social, a igualdade global e o bem-estar planetário.

Mas, de forma inusitada, a nova definição é a que mais se aproxima do que é aplicado no fictício vilarejo chamado Bacurau. Localizado dentro do também onírico e distópico município de Serra Verde. Em meio a  uma aparecente calma e simplicidade, existe o Museu Histórico de Bacurau. Esse texto não é sobre comparação de práticas museológicas. Mesmo porque o conteúdo do museu é quase um mistério. Muitos personagens falam sobre ele, vemos um ou outro entrar, mas o espaço não chega a ser tão importante assim, ele só precisa estar lá.

Eu entendo isso como uma necessidade por uma materialidade, algo para se referir. Porque o objetivo "de contribuir para a dignidade humana e para a justiça social" do museu já é feito por toda a comunidade. É como se as pessoas fossem educadores e usuários. Trocando e acessando suas memórias através das práticas conjuntas.

Porque se a história de Bacurau é uma história de luta e união, sua preservação se dá pela manutenção desse espírito de resistência e o desafio a opressão. O único personagem principal é o vilarejo, ele culmina os desejos e vidas do coletivo, a memória inteira de um espaço pulsante e vivo, que apesar da sua "insignificância" diante de forças mais poderosas, ousa continuar a querer existir.

Eu não consigo não ver nesse desenrolar as próprias sagas dos diferentes povos nordestinos em suas migrações pelo Brasil. Histórias de sobrevivência e sobre vivência, mantendo suas práticas culturais, adaptando-se sem renegar suas raízes. Não estou falando de idealizações ou romantização do sofrimento. Eu falo de permanências e memórias, salvaguarda através da manutenção dos laços com a sua origem, mesmo que distante.

Shirley Jackson explorou com maestria a possibilidade de um local-entidade, capaz de ter uma personalidade e essa ser cruel, que atrai e cria a desgraça, destruindo a sanidade de quem se atreve a adentrá-lo. Bacurau pega a outra via, um local que mantém a sanidade e a esperança de todos, dando forças e protegendo, mantendo-os dentro da realidade, não os drogando.

E o mundo real pode ser violento e a violência também pode ser necessária para se defender. Apesar dessa ideia estar clara na mente de todos, ela não é glorificada. Há uma tristeza muito grande no ato, ninguém está feliz. A pergunta que mais se repete diante de um ato de violência é por quê? E nunca há repostas corretas.

Sônia Braga com a sua Domingas emerge magnificamente como a personificação dessa tristeza diante do sofrimento. Sua personagem é dura, viveu o suficiente para ver todas as mazelas que um ser pode provocar em outro. O olhar que Domingas tem é forte, nele você vê como uma alma pode sucumbir a dor. Mesmo assim ela resiste, uma vontade de viver brutal a mantém. Essa que está além da sua própria compreensão e querer. 

A morte é mostrada de um jeito mais potente, gráfico o suficiente para que não haja banalização. Nesse sentido, a fotografia e a direção de arte são perfeitas, há uma total imersão no povoado, nossos sentidos são provocados e subvertidos. Ao final, eu ainda sentia como se estivesse lá, foi uma experiência sensorial profunda.

Eu tinha muitas expectativas quanto a Bacurau, imaginava como seria o roteiro e o tipo de filme. Nada foi como eu imaginava, tudo foi melhor, ainda bem. É uma história intensa que foge de muitos parâmetros, porém, o que mais me tocou foi o elenco. As pessoas que estão nas telas são o mesmo tipo de pessoa que andam pelo meu meu bairro, que eu vejo no trem, que dividem o café na padaria, são minha família, são meus amigos de infância. São verossímeis com há muito tempo eu não via.

Bacurau é grandioso.

* Eu retirei a proposta de nova definição daqui.

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