Um homem sofre desmesuradamente com as notícias que lê nos jornais, com todas as tragédias humanas a que assiste. Um dia depara-se com o facto de não se lembrar do seu primeiro beijo, dos jogos de bola nas ruas da aldeia ou de ver uma mulher nua. Outro homem, seu vizinho, passa bem com as desgraças do mundo, mas perde a cabeça quando vê um chapéu pousado no lugar errado. Contudo, talvez por se lembrar bem da magia do primeiro beijo – e constatar o quanto a sua vida se afastou dela – decide ajudar o vizinho a recuperar todas as memórias perdidas. Uma história inquietante sobre a memória e o que resta de nós quando a perdemos.
Um romance comovente sobre o amor e o que este precisa de ser para merecer esse nome.
"Entremos mais dentro na espessura"
No momento em que a última página desse livro foi virada, parecia que eu tinha participado de uma jornada muito pesada, consegui chegar ao final, mas não sem marcas. É um livro sobre um amor melancólico, pesado, relacionamentos difíceis e por vezes, legados a um final triste. Não se engane, não é sobre a perfeição, na imperfeição, é o reconhecimento da dor, do inevitável.
Os personagens são muito dúbios: um homem que não sabe quem é, o Sr. Ulme, mas se mostra um sábio a seu modo, doce, gentil e cheio de conhecimento para dar. Ao mesmo tempo que essa imagem de um senhor bondoso, aos poucos, descobrimos como foi a sua vida e começa-se a colocar a prova essa áurea dele.
Já o jornalista é um homem que se adequou tanto a rotina que parou de apreciar as coisas, de ser instigado pelas pessoas, e busca em poucos momentos de prazer um pouco de vida que seja. Um marido não muito bom e um pai que ainda está se ajustando a esse papel, tentando ser como o seu falecido pai, mas que se frustra quase ao desespero toda vez que sente a solidão de não o ter por perto.
No final, são dois homens que precisam de ajuda. Esse com certeza é um dos pontos mais tocados no livro, a necessidade do outro e como fazer para lagar o orgulho para pedi-la, ou ainda, aquela vontade louca que se tem que alguém note, apesar do sorriso no rosto, o seu desespero e a sua solidão.
O primeiro passo para uma “salvação” é saber quem somos. Mas como saber isso? Cruz explora através da memória, nossas lembranças que temos desde a tenra idade, isso é um viés do que somos. Mas ainda há um outro lado, as lembranças que os outros tem de nós, elas também são parte do que nós conhecemos pelo eu. Mais, os nossos registros oficiais, as nossas fotografias, as notícias, o ambiente em que vivemos, uma parte se completa com a outra, e a partir daí é possível construir uma de várias imagens do que somos.
Quando se perde uma parte é possível remontar um eu pelas outras. E antes de tudo aceitar que o ser humano é mutável, e o que nós somos é diferente do que fomos, mas não outra coisa, só diferente. O livro nos conduz por esses labirintos psicológicos através de uma linguagem fácil e muitas vezes poética, com capítulos curtos, os leitores podem ir montando esse quebra cabeça que é a vida dos personagens.
Detalhe dessa capa maravilhosa
AUTOR(A): Afonso Cruz
PÁGINAS: 270
EDITORA: Companhia das Letras
LANÇAMENTO: 2016